Há exatos dois anos, a empregada doméstica Elica Nayara Dias Silva, 26, não trabalha e vive exclusivamente em função de acompanhar o tratamento da filha Flávia, 6, que luta contra as sequelas de queimaduras sofridas durante o ataque à Creche Gente Inocente, incendiada na manhã de 5 de outubro de 2017 pelo vigia Damião Soares dos Santos, 50. O atentado deixou 14 mortos – incluindo o autor – e dezenas de feridos em um episódio que ficou conhecido nacionalmente como “massacre de Janaúba”, no Norte de Minas. “Hoje, nós vivemos de doações”, conta a mãe.
A família dela está entre as cerca de 60 que enfrentam a angústia de ver paralisada a ação civil pública movida pela Defensoria Pública de Minas Gerais contra a prefeitura do município. Até agora, não há sequer uma data agendada para a realização da primeira audiência sobre o caso.
A ação coletiva pede que a Justiça reconheça a Prefeitura de Janaúba como a responsável pela tragédia, uma vez que o crime foi cometido dentro de uma creche do município e foi praticado por um servidor público, que era o vigia. O defensor responsável pelo caso, Gustavo Dayrell, pede ainda que o juiz estabeleça indenizações, levando em consideração as peculiaridades de cada família atingida pelo incêndio.
“O trâmite na Justiça vai ser longo”, avalia Dayrell. Diante da demora em dar início à discussão e da possibilidade de que o município recorra das futuras decisões sobre o caso, ele prevê que o processo deve se arrastar por anos. “Após a sentença, as partes vão recorrer. E, se alguém ganhar, é preciso entrar na fila do precatório (requisições formais). É difícil falar em tempo, mas acredito que não demore menos de sete anos”, analisa o defensor.
Sofrimento
Para a mãe da pequena Flávia, não há indenização que amenize o sofrimento da família ao ver a menina com 70% do corpo queimado. Atualmente, a garota faz acompanhamento médico semanal em Juatuba e Montes Claros e viaja todos os meses a Belo Horizonte para dar continuidade ao tratamento das queimaduras.
“A vida dela mudou completamente. Ela não pode mais vestir uma roupa sem colocar placas de silicone e usar malhas para o tratamento de queimaduras. Não pode mais brincar na terra ou onde o sol bate. É sofrido”, desabafa Elica.
Em nota, a Procuradoria de Janaúba informou que as vítimas e os familiares recebem atendimento com pediatra, pneumologista, fisioterapeuta, psicólogo, enfermeiro e outros profissionais de saúde.
Prefeitura diz que já pagou R$ 1,2 milhão
A procuradora do município de Janaúba, Amanda Amarante Moreno, afirmou, por meio de nota, que a prefeitura reconheceu, em 2018, o dever de reparação pela tragédia e antecipou o pagamento de indenizações às famílias. Segundo ela, são pagos mensalmente valores de R$ 500 ou R$ 1.000, dependendo da situação de cada vítima.
Para a procuradora, ao antecipar as indenizações, o município atende parte dos pedidos feitos na ação movida pela Defensoria. Ainda segundo Amanda, “a ação está em fase de instrução, e a Procuradoria do Município já tomou todas as providências judiciais cabíveis quanto aos pontos que são controversos, sobretudo referente à comprovação dos serviços prestados às famílias ininterruptamente”. De acordo com a procuradora, a prefeitura já pagou mais de R$ 1,2 milhão em indenizações para mais de 80 famílias.
Dinheiro de doação está acabando
As doações feitas por voluntários de todo o país logo após a tragédia ainda ajudam parentes das vítimas. Segundo o defensor público Gustavo Dayrell, os recursos são administrados pela Associação das Vítimas da Tragédia em Janaúba (AVTJana).
No entanto, segundo ele, o dinheiro está se esgotando. “Foram quase R$ 800 mil doados. Mas é provável que, em até seis meses, a associação não tenha mais esse recurso”, afirma Dayrell.
Minientrevista
Gustavo Dayrell
Defensor público
Em que fase está o processo sobre a tragédia na Creche Gente Inocente?
A parte criminal já foi arquivada porque o autor do massacre faleceu, e as autoridades policiais entenderam que não teria outro responsável pelas mortes. Quanto à parte cível, tem uma ação coletiva buscando a indenização dos familiares. O processo está tramitando.
Qual é o principal argumento da Defensoria Pública na ação movida contra o município de Janaúba?
O pedido de indenização tem várias razões. Uma delas é que, só pelo fato de ter ocorrido algo dentro do ambiente que pertence à prefeitura, a lei diz que o poder público é o responsável, porque ele tem a custódia das crianças. E, quando o autor é um servidor do município, o ato do profissional é imputado ao poder público. No caso, ocorreram as duas coisas. Por essa razão, o poder público deve responder pelas indenizações.
Se 13 pessoas morreram na tragédia, além do autor, por que as ações contemplam cerca de 60 famílias?
Foram 13 falecimentos, mas há pessoas que sobreviveram com sequelas. Além disso, essa ação diz respeito aos familiares de quem morreu também.
Serviço
Evento. Em uma tentativa de tornar menos dolorosas as lembranças para os atingidos, Janaúba terá, hoje, missa, brincadeiras ao ar livre e atendimento de beleza e bem-estar.