Segundo denúncia, ‘porta do HPS foi aberta para qualquer caso’, e pacientes são mantidos nos corredores
PUBLICADO EM 10/12/18 - 03h00
RAFAELA MANSUR
Maior pronto-socorro de Minas Gerais e referência em trauma na América Latina, o Hospital de Pronto-Socorro (HPS) João XXIII, em Belo Horizonte, estaria, segundo médicos, assumindo o papel de unidades básicas de saúde e de pronto-atendimento, prejudicando a assistência a vítimas de politraumatismo, grandes queimaduras, intoxicações e situações de risco iminente à vida, que é a missão da instituição. O diretor clínico Marcelo Girundi estima que 50% dos casos do HPS poderiam ser atendidos em outros locais por serem menos complexos. De acordo com os profissionais, a situação gera superlotação, prejudica o fluxo de atendimento, mantém pacientes nos corredores e compromete os recursos já escassos de pessoas e estrutura.
“A porta do hospital foi aberta para qualquer caso. Se a pessoa fala que está com dor de cabeça, ela é atendida, e o hospital não é preparado para esses pequenos casos. Eles ocupam toda a estrutura de pacientes graves”, diz Girundi. Segundo ele, pacientes chegam a ficar uma semana no corredor, o que gera risco. “Eles ficam mais tempo no hospital, aumenta o risco de infecções, e, quanto mais tardia a abordagem de determinadas lesões, pior pode ser o resultado do tratamento”, afirma.
Em um fluxo normal de atendimento, após a realização de cirurgia, o paciente deve ir para a enfermaria ou, em casos mais graves, para o Centro de Terapia Intensiva (CTI). Segundo o médico, em ambos há problemas de lotação. “Não tem leito, e ele fica na sala de recuperação anestésica. Quando está cheia, uma sala do bloco cirúrgico é bloqueada para ficarem doentes lá também. Se chega alguém em estado grave, não temos sala para operar”, diz Girundi, acrescentando que o fechamento da unidade ortopédica do Hospital Galba Velloso, que funcionava como apoio ao HPS, também contribuiu para a lotação da unidade.
Médico no João XXIII há mais de 30 anos, o cardiologista e intensivista Marco Aurélio Rocha afirma que o “desvio de função” do hospital diminui a capacidade de resposta a casos graves. “O foco é atender rapidamente pacientes gravíssimos. Temos um tempo muito curto para que a vida deles não seja prejudicada. E os casos menores desviam a atenção do corpo principal”, pontua. Segundo ele, o hospital trabalha com capacidade máxima, e o ideal seria ter “reserva operacional” para grandes emergências – vítimas do incêndio do Canecão Mineiro, em 2001, e da creche de Janaúba, em 2017, foram atendidas no HPS.
Para Girundi, a solução passa pela triagem médica no hospital e por uma gestão mais “assertiva” do sistema de urgência e emergência do Estado. “Temos que definir quem vai ficar com os hospitais, as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e os postos de saúde. A maioria das famílias tem um ente que já precisou do HPS e tem boas recordações disso. Queremos que a tradição continue”, salienta.
Novo sistema vai permitir encaminhar pacientes
Está sendo implantado no HPS João XXIII um sistema que vai possibilitar o encaminhamento de pacientes classificados com a cor verde, que indica que o atendimento pode ocorrer em duas horas, para outras unidades de saúde.
Segundo o diretor assistencial da Fhemig, Marcelo Lopes Ribeiro, hoje a classificação de risco no hospital é feita por enfermeiros, conforme o Protocolo de Manchester, que estabelece o atendimento de acordo com a gravidade de cada caso. Médicos estão sendo treinados para atuar no processo.
Para Ribeiro, a lotação do hospital não é causada pelas portas abertas, e, sim, pela resolutividade demorada na unidade e pela desorganização do Sistema Único de Saúde (SUS) na região metropolitana: “O João XXIII continua cumprindo a missão dele. Tudo o que é possível com que o Estado coloca à nossa mão está sendo feito”.
‘A gente trabalha controlando o caos’
Por falta de pessoal, seis leitos de CTI do Hospital João XXIII estão fechados – 98 estão funcionando. “Em um hospital do tamanho do HPS e com a responsabilidade que ele tem, esses leitos fazem falta demais. Vários pacientes que estão na sala de emergência e na sala de recuperação deveriam estar no CTI. A gente trabalha controlando o caos”, afirma o cirurgião geral e de trauma do hospital, Rômulo Andrade Souki.
Segundo o diretor clínico Marcelo Girundi, todas as equipes médicas estão desfalcadas: “Os médicos trabalham com sobrecarga de trabalho. Às vezes, há cinco casos de especialidades diferentes para serem operados e só dois anestesistas no bloco cirúrgico”.
Profissionais como enfermeiros e técnicos de enfermagem também são insuficientes para a demanda. O hospital atende, em média, 7.827 pacientes por mês, segundo dados do ano passado. “Em um setor com 30 pacientes, o normal seriam cinco técnicos de enfermagem para garantir assistência adequada, e há três. Alguma coisa acaba sendo prejudicada, e a assistência ao paciente perde qualidade”, diz o diretor da Associação Sindical dos Trabalhadores em Hospitais, Carlos Augusto Martins.
Concurso. O Estado se comprometeu com o Sindicato dos Médicos a fazer concurso neste ano para repor vagas na Fhemig. Segundo o governo, o concurso foi autorizado, mas não há previsão para publicação do edital.