Segundo juiz, ao menos oito detentos da Nelson Hungria teriam sido soltos com a fraude
PUBLICADO EM 10/11/18 - 03h00
TATIANA LAGÔA
Um esquema de pagamento de propina para compra da liberdade de presos de alta periculosidade, divulgado em primeira mão por O TEMPO, entrou na mira do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Nessa sexta-feira (9), na operação Resgate, foram cumpridos nove mandados de busca e apreensão, além da prisão temporária de quatro suspeitos de participação da quadrilha, entre eles um agente penitenciário. O grupo já teria faturado milhões de reais com a soltura indevida de criminosos no Estado. Uma pessoa está foragida.
A fraude teria sido cometida no Setor de Arquivos e Informações da Polícia Civil (Setarin), responsável por manter atualizado o acervo de mandados de prisão. Segundo o MPMG, nessa sexta-feira (9) foram apreendidos documentos, aparelhos celulares, dinheiro e joias dos envolvidos na fraude do sistema, que tem acesso restrito.
Os quatro homens presos foram ouvidos, e as investigações vão continuar sob segredo de Justiça. Nessa sexta-feira (9), o MPMG não divulgou detalhes do caso. “Conforme investigado, o esquema criminoso, integrado por advogados, policiais civis e agentes penitenciários, beneficiava detentos de alta periculosidade e elevado poder aquisitivo, movimentando ilicitamente milhões de reais em propinas pagas aos servidores públicos”, afirmou nota divulgada pelo órgão.
O esquema ganhou visibilidade em dezembro passado, quando um dos principais traficantes de Minas Gerais, Luís Henrique Nascimento Vale, conhecido como Totó, 35, saiu pela porta da frente da penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana. Ele é condenado a 53 anos de detenção e conseguiu liberdade às vésperas do réveillon, apenas 17 meses depois de ter sido preso. Fontes ouvidas pela reportagem garantem que o criminoso teria pagado R$ 600 mil pela liberdade.
Assim que tomou conhecimento da situação, o juiz da Vara de Execuções Criminais de Contagem, Wagner Cavalieri, abriu um procedimento para apurar quantas pessoas teriam sido soltas indevidamente. No dia 8 de janeiro, o magistrado assinou um documento oficializando a “fuga” de três outros criminosos, além de Totó. Os autos foram depois encaminhados para o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MPMG, que deu início às investigações.
Segundo Cavalieri, a “falha” ocorreu no Setarin, responsável por manter atualizado o acervo de mandados de prisão. A suspeita é que alguém estivesse recebendo para apagar a ficha criminal de presos e, assim, eles pudessem ser soltos. Na prática, quando um advogado consegue na Justiça a soltura ou o relaxamento de pena de um cliente, o sistema prisional puxa a ficha do acusado para saber se existem outros crimes que o impedem de sair da cadeia.
Envolvidos. Estão na mira do Ministério Público, advogados, policiais civis e agentes penitenciários. A Polícia Civil, disse que acompanha as investigações e apura na esfera disciplinar.
Esquema beneficiou ao menos oito detentos
O número exato de presos que teriam “comprado” a liberdade em Minas Gerais ainda é desconhecido. Mas já se sabe que pelo menos oito detentos na Nelson Hungria, em Contagem, saíram por meio do esquema, segundo o juiz da Vara de Execuções Criminais de Contagem, Wagner Cavalieri.
Todos eles, segundo o magistrado, têm um perfil parecido. “São presos com envolvimento maior com a criminalidade, com penas maiores e aproximação com o crime organizado”, conta o juiz. Por isso, segundo ele, o risco da soltura é ainda maior. “Estão voltando para o convívio da sociedade sem cumprir as penas. E só por terem pagado para sair do presídio já dá para entender que eles continuam envolvidos com o crime”, completa.
Uma fonte ligada às investigações, que não quis ser identificada, disse acreditar que têm casos em outros presídios. “Não é um golpe novo, apesar de ter sido descoberto agora. E claro que não aconteceria só em um presídio”, disse.
Saiba mais
Seap. Em nota, a Secretaria de Estado de Administração Prisional (Seap) informou que também participou da operação deflagrada pelo Ministério Público de Minas Gerais, por meio do Núcleo de Correição Administrativa da Seap.
Agente penitenciário. Ainda segundo a Seap, entre os quatro detidos nessa sexta-feira (9) está um agente de segurança penitenciário. Ele foi afastado de suas funções e responderá a Processo Administrativo Disciplinar. O profissional tem 46 anos e é efetivo desde janeiro de 1995, ou seja, há 23 anos. Ele ficará preso provisoriamente no Complexo Penitenciário Nelson Hungria, em Contagem, à disposição da Justiça.
Minientrevista
Fábio Piló
Presidente de assuntos carcerários da OAB-MG
Como funcionaria esse esquema?
Se não constam no Setarin outros impedimentos judiciais, eles (os suspeitos) podem ter burlado o próprio sistema, que pode ter sido invadido externamente ou limpo por servidores públicos.
E como seria o trâmite?
Por exemplo: se eu respondo por cinco processos e estou preso por todos, e, em um deles, o meu advogado entrou com pedido de liberdade provisória, e o juiz deferiu, a Justiça expede alvará de soltura, que é encaminhado para o Setarin fazer a consulta se há impedimento judicial para que ela seja efetivada. Consultado e sem restrição, o alvará segue para o presídio, que cumpre a soltura. Se houver alguma, ele não é solto.