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VALE TERÁ DE PÔR PREÇO NO JEITO DE DONA MARCIANA VIVER
09/06/2021

(“Moço, não há dinheiro no mundo para comprar minha casa")
 
Imaginemos: Marciana Assis, 84 anos, mora há 50 no bairro Bela Vista, sozinha. Enxerga pouco, anda com vagareza e tem umas doencinhas chatas, mas também a sorte de morar perto de Zé Julião. Por qualquer tosse, lá vai ele, à casa dela. Verifica temperatura, leva-a "ao doutor", faz chá de limão, ajeita bambá de couve com costelinha, prepara inhame com melado de rapadura. Se dona Marciana não aparece no alpendre para se aquecer ao sol, sabe que a octogenária não está bem e corre para uma visitinha. Sabe qual gaveta guarda termômetro e em qual compartimento do guarda-roupa fica uma caixa de camisas Us Top cheia de remédios. “Zé Julião é anjo de Deus. Não tem hora nem tempo, feriado, madrugada, chuva, pau pra toda obra. Mais que filho.” O homem se emociona: “Não conheci minha mãe, morreu em desastre poucos meses depois do meu nascimento. Desde 1982 dona Marciana me dá essa alegria de ser a mãe que o destino me tirou”.
 
Há dinheiro que compre uma história assim, quantos números é preciso escrever no cheque? A empresa Vale terá de decidir, pois desmanchará vivências similares, talvez até mais profundas, quando expulsar centenas de moradores dos bairros Bela Vista e Nova Vista, em Itabira, no processo de desmontagem de diques a montante na megabarragem-bomba Pontal, que ameaça vidas humanas, animais e vegetais com cerca de 220 milhões de metros cúbicos de água e lama metálica. Uma das providências para tentar evitar tragédia durante a obra será construir muros com tecnologia similar à que o Japão usa contra inundações causadas por tsunamis.
 
Não será a primeira vez que a mineradora romperá radicalmente parte do tecido social no município, violentando um direito básico das pessoas: escolherem, de acordo com posses e gosto, o cantinho onde desejam viver. Para beneficiar suas impactantes operações, já acabou, entre outros lugares, com a vila Sagrado Coração de Jesus e com o bairro Cento e Cinco e está em processo de apagamento de parte da vila Paciência. É como passar um caminhão fora de estrada com 240 toneladas de minério, daqueles de pneus gigantes, sobre relações de amizade, solidariedade e comunicação construídas em décadas.
 
“Não sabemos se Itabira está dentro da Vale ou se a Vale está dentro de Itabira”, costumam dizer engenheiros da exportadora de minério sobre o tumultuado imbricamento entre a cidade e minas. Crassa ignorância acerca da história local: a Vale é de 1942, já o povoamento de Itabira começou no início do século XVIII, talvez antes, no final do XVII, em redor do intacto e belo pico do Cauê. “Descobriram-se, em 1698, as Minas Gerais, as do Ouro Preto, as do Morro, as do Ouro Branco, as de São Bartolomeu, Ribeirão do Carmo, Itacolomi, Itatiaia, Itabira”, escreveu o historiador baiano Sebastião da Rocha Pita em sua História da América Portuguesa.
 
Fácil, portanto, saber quem chegou primeiro, embora essa questão de data seja inócua, tola até, no debate sobre os danos graves e gravíssimos provocados pela mineração na cidade-berço da Vale. O determinante é que a empresa precisa aprender a respeitar Itabira e mudar seu modelo draconiano de atuação contra o município que, às custas de muito padecimento, fez a grandeza universal da firma fundada por Getulio Vargas.
 
Como bem material, casa tem preço, avaliadores competentes e honestos conseguem estipulá-lo com justiça, mas e casa como lar, parte quase orgânica de seus habitantes, patrimônio cultural moldado conforme a personalidade familiar? Como dar preço a uma esplêndida horta fornecedora de alimentos saudáveis para netinhos, cultivada pacientemente por décadas? A um esmerado jardim que há 38 anos ilumina a vida dos moradores com rosas, orquídeas e dálias? A um pomar farto em mangas, goiabas, laranjas e jabuticabas? Toda pessoa terá razão se quiser para o resto da vida aquilo que vem edificando. Casa é tijolo e cimento, mas também é espírito.
 
Se dona Marciana pedir R$ 500 mil por sua casa física no Bela Vista — alvenaria, telhado e pé-direito — e R$ 100 milhões pela construção formada segundo seus hábitos, idiossincrasias, sua forma única de buscar a felicidade, ninguém conseguirá provar que está errada. Dona Marciana tem até o direito de endurecer quando alguém da Vale lhe apontar um cheque: “Moço, não há dinheiro no mundo para comprar minha casa. Mudando de assunto, aceita um cafezinho coado na hora? Zé Julião acabou de passar...”
 
O TREM ITABIRANO
 

 


 

 

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