Poucas horas após a avassaladora tempestade que atingiu Belo Horizonte na última terça (28), vídeos publicitários da prefeitura de Belo Horizonte na década de 1970 começaram a circular pelas redes sociais. No primeiro deles, o locutor de voz grave conta uma história, à medida em que se veem imagens de um córrego que passava pela cidade. “Era uma vez um Leitão que parecia manso, mas era bravo e sujo, muito sujo. Quando enchia, entrava até na casa dos outros. Às vezes enfurecia (...) O córrego do Leitão não respeitava nada, ninguém”, diz.
No segundo, que mostra uma avenida e carros se movimentando, segue: “Hoje, o Leitão está por baixo dessa nova e ampla avenida. Uma verdadeira passarela negra que vai ajudar a resolver nossos problemas de trânsito. Cenas de enchentes você nunca mais verá. Dessa própria obra, com o tempo, você esquecerá. Mas não deve esquecer, para o bem da cidade, que o dinheiro de impostos está sendo empregado em realizações como a canalização do Leitão”.
Os vídeos refletem um pensamento vigente na capital desde sua fundação. Planejada no fim do século XIX, Belo Horizonte foi instalada onde fica por conta da qualidade e da fartura das águas das bacias dos ribeirões Arrudas e do Onça. De forma contraditória, já na planta, o projeto urbanístico de Aarão Reis – à exceção do Arrudas – ignorou solenemente essa abundância de cursos d’água.
O resultado dessa mentalidade centenária pôde ser visto novamente após as chuvas de janeiro, que embora tenham sido em volume recorde, apenas escancararam um problema que é endêmico da cidade.
De acordo com o arquiteto e urbanista e professor da Escola de Arquitetura da UFMG Roberto Andrés, já no início da cidade, o córrego do Acaba Mundo, o Leitão e o da Serra atravessavam lotes, visto que o planejamento geométrico das ruas não considerava seus cursos. A consequência disso foi que, já na década de 1920, eles começaram a ser canalizados.
“As cabeceiras vão sendo desmatadas e ali passa ser destino de o esgoto. Isso fez com que córregos passassem a ser mal vistos pela população, já que essa prática ocasionou acúmulo de lixo, poluição, mau cheiro. E então as pessoas deixam de vê-lo como elemento natural de convívio, como era no tempo do Curral Del Rei, o arraial que havia antes de Belo Horizonte”, afirma o professor.
A partir da década de 1960, com a chegada a indústria automobilística ao país, esse processo se intensifica, como observa o geógrafo, professor e autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira” (ed. Clube de Autores), Alessandro Borsagli. “Com isso, veio uma pressão muito forte pela reforma urbana das cidades, por alargamento de vias, abertura de vias expressas, avenidas etc. E os cursos d’água, nesse novo planejamento rodoviarista, entraram em rota de colisão com a cidade, eram vistos como entraves para o desenvolvimento regular da cidade”, explica.
Esse modo de pensar teve continuidade nas décadas seguintes e o Bulevar Arrudas – fruto da canalização e do tamponamento do principal ribeirão da cidade, foi inaugurado em 2007, com novos trechos criados nos anos seguintes –, é símbolo disso. Como consequência direta dessa mentalidade, dos 700 km de cursos d’água da capital, 208 km estão canalizados ou revestidos, ou seja, 29,71%. Destes, 165 km se encontram em canal fechado e 43 km em canal aberto. Há 200 km em leito aberto na malha urbana e 300 km localizados em áreas de preservação.
Por conta disso, o ambientalista, idealizador e fundador do projeto Manuelzão e professor da faculdade de Medicina da UFMG Apolo Heringer Lisboa ressalta a importância de não se criminalizar a chuva. “A chuva foi muito forte, mas não foi ela que causou isso não. O que ela fez foi expor a fragilidade da concepção da gestão das águas em Belo Horizonte e como o poder público está a serviço da indústria das enchentes, dessas empreiteiras que só sabem impermeabilizar o solo e canalizar os rios”, critica.